Eram 8 horas, 27 minutos e 21 segundos da quinta-feira, 31 de outubro de 1996, quando imóveis na Rua Luís Orsini de Castro, no bairro Jabaquara, na capital paulista, foram atingidas por um Fokker 100 da TAM Linhas Aéreas que cumpria o voo TAM 402. A aeronave passou apenas 24 segundos no ar. A tragédia causou a morte de 99 pessoas: os 96 ocupantes da aeronave e três pessoas que estavam em solo. Foi um marco da aviação brasileira, com consequências a respeito do suporte às famílias das vítimas.
O Fokker 100 envolvido na tragédia tinha matrícula PT-MRK, número de série 11440 e era novo: havia sido entregue diretamente para a TAM em setembro de 1993. A aeronave não tinha má fama no Brasil. Pelo contrário: o PT-MRK ostentava a pintura “Number One”, uma comemoração pelo fato de a companhia aérea ter sido escolhida como a melhor do mundo na categoria regional. Informalmente, a TAM chamava o Fokker 100 de “O jato de Congonhas”, uma estratégia de marketing pelo crescente uso do modelo, que deu dinamismo às operações com aeroporto.
Naquela manhã, ainda durante a corrida de decolagem soou um alarme na cabine, que os pilotos identificaram como referente à inoperância no autothrottle. Não era. Ao atingir 242 km/h, o jato decolou e, por conta da gravidade, as conchas do reverso do motor da direita se abriram, o que levou à repentina mudança da manete daquele motor para a posição idle. A força do motor da esquerda fez a aeronave virar para a posição da direita. O reverso inoperante chegou a ficar em posição normal por dois segundos, mas logo voltaria a se abrir inadvertidamente, o que gerava a assimetria de um motor à toda força impulsionando o jato para frente e o outro produzindo arrasto aerodinâmico. O equipamento defeituoso se fecharia ainda por mais quatro segundos, porém dessa vez houve o rompimento de um cabo de controle, o que fixou na posição de frenagem. A apenas 40 metros do solo o avião perdeu sustentação e iniciou um giro final. Sem treinamento específico, os dois pilotos não compreenderam o que se passava, e sequer, por exemplo, recolheram o trem de pouso, o que poderia ajudar a diminuir o arrasto.
As conclusões do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) mostraram que os pilotos não tinham instruções nem escritas nem práticas para esse tipo de ocorrência. Já o projeto da aeronave foi criticado pela falha. Entre as recomendações de segurança, a TAM deveria alterar o livro de bordo para registrar melhor as panes – como o travamento de um reverso -, a Fokker deveria modificar o sistema elétrica do reverso e os operadores da aeronave deveriam passar a ter um treinamento melhor realizado sobre esta possíveis falhas a baixa altura.
Direitos das famílias
O acidente levou, em maio de 1997, à criação da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (ABRAPAVAA), que se dedica ao acolhimento e na busca dos direitos de quem é afetado por tragédias do tipo. “O grande problema é que, em 1996, o Brasil ainda não tinha uma norma de assistência a familiares de vítimas como tem hoje. Isso também foi conquista nossa. Quando tem um acidente de maior proporção, logo os familiares são instalados em hotéis e começa a ter padre e psicólogo. Essa norma passou a ser uma obrigação para toda as aéreas em 2005, com a Anac [Agência Nacional de Aviação Civil]”, disse Sandra Assali, que perdeu o marido no acidente de 1996, e é a presidente da associação. “Naquela época, a coisa foi muito complexa. Foi um divisor de águas. Uma das questões foi essa, mudou totalmente a forma de lidar com familiares de vítimas”, acrescentou.
Só em 2005, com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), foi criado um plano de assistência aos familiares de vítimas de acidentes aéreos, tornado obrigatório para todas as empresas que operam no Brasil. Por exemplo: é obrigatório haver uma lista com o nome de todos os ocupantes em até três horas após a tragédia, e os parentes têm o direito de serem informados antes de o assunto ser passado à imprensa. A devolução de objetos pessoais, a acomodação em local próximo da tragédia, assistência médica, psicológica e religiosa também estão entre a lista de direitos.
Outra conquista da Abrapavaa diz respeito ao seguro obrigatório, o chamado Reta. Antigamente, o valor do seguro no Brasil para um acidente aéreo era de R$ 14 mil por vítima. Um valor considerado muito baixo pelas famílias. Em 2009, a associação conseguiu mudar esse valor para R$ 41 mil (corrigido pelo IPCA). “Entendemos que o valor do Seguro Reta deva ser um valor digno para que as famílias envolvidas possam, num primeiro momento, ver suas primeiras necessidades mais básicas atendidas pois, muitas vezes, essas famílias perdem seu provedor e esse valor deve ser ao menos suficiente para o início de todo um processo que demandará inúmeras despesas, tanto judiciais, como domésticas, médicas, etc”, descreve a associação em seu site.
“Quando aconteceu o acidente em 2007, falei que não dava mais [para ser esse valor de seguro]. Era absurdo. Nos Estados Unidos, são 120 mil dólares [de seguro]. Na Europa, 130 mil euros. E, no Brasil, era R$ 14 mil.”, relembrou. “Recorri ao MPF [Ministério Público Federal], que abraçou nossa causa e, junto à Anac, fizemos todo um trabalho e conseguimos, em 2009, obter o valor de R$ 41 mil, porém com correção pelo IPCA [Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo]. Hoje, em 2021, está por volta de R$ 82 mil”, disse Sandra. “A gente ainda acha que pode melhorar esse valor, mas já é uma conquista.”
Mário Luiz Sarrubbo, procurador-geral de Justiça do estado de São Paulo, concorda que a mudança no Reta era necessária. “Por ser o primeiro grande acidente pós-Constituição de 1988, com imprensa livre, com informações com transparência, descobriu-se a questão do seguro, o Reta, era algo muito precário que não atendia as necessidades dos passageiros, não trazia segurança”, afirmou.
“Hoje já há outro nível até porque as empresas, pela legislação civil, são responsáveis independente de culpa. Quando se compra passagem, seja de avião, ônibus, barco, a empresa tem o dever de te entregar no seu destino. Se ela não entregar, não importa a razão, ela tem que te indenizar. Agora, essa questão de seguro está mais bem resolvida”, disse Sarrubbo.
Segundo a Anac, a atualização monetária do seguro Reta passou a ser ajustada pelo IPCA após publicação de uma resolução em 2008. Ainda segundo o órgão, os valores variam conforme o porte, a categoria e o tipo de operação da aeronave.
A Abrapavaa continua em funcionamento, com atuação em acidentes de pequeno porte ou envolvendo aeronaves menores. “Fundamos a associação e já começaram a surgir inúmeros acidentes menores, de aviação geral, que não tinham solução. Nos acidentes menores, como tem poucas vítimas, você tem menos familiares envolvidos. E é até mais difícil para eles conseguirem informações. Então acabamos sendo uma referência. Por isso, 25 anos depois, a gente já trabalhou, seguramente, com mais de 200 acidentes aéreos”, disse Sandra Assali, em entrevista à Agência Brasil.
Transparência na investigação
Segundo Sarrubbo, outra mudança provocada pelo acidente com o Fokker 100 da TAM diz respeito à transparência. “Esse acidente foi um grande paradigma também na questão da transparência. A comissão de investigação da Aeronáutica, naquela oportunidade, se negou a enviar seus pareceres e conclusões ao sistema de Justiça”, relembrou.
“O Ministério Público de São Paulo entrou no STJ [Superior Tribunal de Justiça] e conseguiu obter a medida cautelar que obrigava os órgãos de segurança, no caso, o Cenipa [Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos], a entregar ao sistema de Justiça todas as conclusões técnicas relacionadas ao acidente. A partir daí, já não houve mais dificuldade. No acidente de 2007, requisitamos as informações e elas vieram sem maior dificuldade”, disse.
Latam
Procurada pela Agência Brasil, a Latam [empresa formada em 2012 pela fusão entre a LAN e a TAM] informou que a aviação mundial “não é a mesma quando se compara com o cenário em 1996, tanto para a empresa quanto para o setor de forma geral”.
“Após 25 anos, muito se avançou em termos de regulamentação e protocolos globais de segurança da aviação, reduzindo aproximadamente em 96% os acidentes aéreos entre 1996 e 2021”, diz a empresa, em nota. “Com o crivo do presente, situações como o acidente do voo 402 de 31/10/1996 coloca sempre uma luz e atenção ainda maior pela segurança e principalmente, pela capacidade de a empresa responder a emergência de forma estruturada, com agilidade e transparência”, acrescentou.
Ainda segundo a empresa, caso um “pior cenário aconteça”, ela “está preparada para agir”, já que tem um plano de resposta à emergência. “Este plano de resposta a emergência é parte da cultura do Grupo Latam com foco em sua premissa número 1: segurança é valor inegociável”, escreveu a empresa, em nota encaminhada à Agência Brasil.
Segundo a aérea, esse plano passa constantemente por um processo interno de revisão de procedimentos e contempla atendimento e assistência às famílias envolvidas.
(Com Agência Brasil)
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