–Mayday, Mayday, Mayday. Este é um quadrijato britânico a aproximadamente 500 milhas a leste do Rio Janeiro, nível de voo 430, com emergência a bordo e pouco combustível. Solicitamos alternativa de pouso para o campo de pouso disponível mais próximo possível.
-Aqui é o controle de tráfego aéreo do Brasil. Por favor, diga seu call-sign, o país de onde partiu e o seu destino.
–Aqui é Ascot 597, um quadrijato britânico com seis pessoas abordo, com situação crítica de combustível e sem pressão na cabine. Pedimos permissão imediata para alternar para o campo de pousou mais próximo possível.
-Ascot 597, Negativo. Você não tem permissão para entrar no espaço aéreo brasileiro. Por favor, informe o país de onde partiu e seu destino.
Foi assim que a Força Aérea Brasileira teve contato direto com uma aeronave envolvida em ações bélicas na guerra nas Malvinas. O dia era 3 de junho de 1982, e o contato com o controle do espaço aéreo seria apenas a primeira parte desse encontro. Isso porque, a despeito da negativa do controle do espaço aéreo, a tripulação britânica decidiu rumar para o Rio de Janeiro.
Dá para entender o porquê. A aeronave era um bombeiro Avro Vulcan na missão chamada de Black Buck 6. Era, portanto, a sexta tentativa da Royal Air Force de realizar aqueles que, até aquele ano, ficaram marcados como os ataques aéreos realizados a mais longa distância até aquele ano. Sem bases próximas às ilhas Malvinas, onde britânicos e argentinos se enfrentavam 40 anos atrás, a Royal Air Force fez o esforço para dar a sua contribuição: os enormes Vulcan partiam da ilha de Ascenção, no meio do Oceano Atlântico, e precisavam do apoio de nada menos que onze aviões de reabastecimento em voo Handley Page Victor para percorrer os 12.200 km da viagem de ida e volta, que durava 16 horas. Os próprios reabastecedores transferiam combustível entre si para tornar a missão possível.
Mas naquele dia 3 de junho de 1982 a sorte não estava com a tripulação do Squadron Leader Neil McDougall. A bordo da aeronave com matrícula XM 597, eles realizaram os quatro primeiros reabastecimentos em voo com sucesso, o suficiente para rumar até o arquipélago em guerra, onde disparariam quatro mísseis AGM-45 Shrike, arma especializada em detectar e destruir radares inimigos. Porém, por problemas técnicos, apenas dois deles saíram dos pilones de lançamento. Foi o suficiente par destruir uma estação-radar de um sistema de defesa aérea SkyGuard, matando quatro militares argentinos.
O retorno já seria mais tenso. A tripulação precisou refazer cálculos de alcance porque, ao contrário do planejado, voavam de volta com o peso de dois mísseis – cada um deles com 175 kg. Até que no quinto reabastecimento em voo ocorreu o maior problema: o comandante Neil McDougall errou na aproximação da cesta e acabou quebrando a sonda por onde poderia receber combustível. O Vulcan não poderia mais pousar em Ascenção.
Os problemas eram vários: a falta de combustível para voltar ao destino, a improbabilidade de sobrevivência em caso de abandono da aeronave no meio do Oceano Atlântico, armamento real a bordo e documentos sigilosos. A primeira tentativa foi de resolver a questão dos armamentos: após usar o radar para se certificar de que não havia navios na região, os dois AGM-45 Shrike foram disparados – mas só um deles efetivamente foi acionado. Duas tentativas adicionais foram feitas, mas o míssil não saiu do lugar. Não tinham mais o que fazer e prosseguiram com ele.
Os cálculos apontavam que a única alternativa viável seria pousar no Brasil, um país que oficialmente mantinha neutralidade na Guerra das Malvinas, mas com alguns favores específicos para a Argentina, como o empréstimo de aeronaves e a permissão para aeronaves vindas da Líbia com direção à Argentina – e supostamente cheia de armas – reabastecessem em seu território. Para que o pouso no Brasil fosse uma alternativa real, seria necessário abrir uma escotilha e jogar fora mapas, códigos, tabelas e todo material que pudesse ser confiscado pelas autoridades brasileiras.
Mas havia um problema: como fazer isso a 43 mil pés de altura? Baixar o nível de voo não era uma alternativa ideal, pois aumentaria o consumo do já escasso combustível. A solução foi cada membro da tripulação ajustar bem suas máscaras de oxigênio e despressurizar a aeronave. Só assim foi possível garantir que tudo o que pudesse se tornar um vazamento de inteligência fosse parar no meio do Oceano – tudo isso sendo feito com os tripulantes tendo dificuldades até para se comunicar.
Finalmente, a tripulação acionou o controle do espaço aéreo brasileiro pela frequência 121,5 do rádio VHF. A reação, porém, não foi de apenas dar orientações pelo rádio. A Força Aérea Brasileira vez mais. O Vulcan apareceu no radar brasileiro às 9h38, em uma rota de aproximação do Rio de Janeiro a mais de 1.000 km/h. Seis minutos depois, dois caças F-5E Tiger II do 1º Grupo de Aviação de Caça receberam o código “Rojão de Fogo”, o que indicava a necessidade de uma interceptação real. Naquele instante, o Vulcan já estava a 300 km do litoral. Às 9h57, o par de F-5 decolou, rompeu a barreira do som próximo à zona sul do Rio de Janeiro e foram em busca do alvo.
De fato, apesar do pedido de socorro dito pelo rádio, o que a defesa aérea brasileira via era um enorme bombardeiro vindo em direção ao Brasil. Não havia sequer a confirmação de que seria apenas um jato. Por isso, os F-5 decolaram com munição real nos seus canhões 20mm para qualquer eventualidade. “O foco da missão foi o socorro aéreo. Mas o acionamento não foi. O acionamento foi para interceptar aeronaves à reação que se aproximavam do espaço aéreo brasileiro. Depois é que se transformou no socorro a uma aeronave que tinha tido problema no reabastecimento em voo”, conta o então Capitão Raul Dias, hoje Major-Brigadeiro da reserva. Ele estava acompanhado do Capitão Marcos Coelho. “Nós decolamos para o combate”, disse o militar, em entrevista.
A tensão foi elevada também porque o Vulcan manteve silêncio-rádio durante quase toda a aproximação, e estava com o equipamento IFF desligado. A defesa aérea também teve dificuldades em conduzir os F-5E diretamente ao local da interceptação. Sem efetivamente do antigo radar de bordo AN/APQ-153 (substituído no processo de modernização realizado mais de 20 anos depois), os caçadores não perceberam que acabaram indo para um nível de voo mais elevado, o que resultou na necessidade de fazer uma manobra e se aproximarem do Vulcan por cima. Durante a manobra de dorso, o Capitão Dias fez a confirmação do tipo de aeronave – havia o conhecimento de que participavam da guerra e voavam por ali, mas nenhuma expectativa de que um deles viesse ao Brasil. “É um avião muito grande, é um delta enorme, uma arraia”, conta o brasileiro.
Na aproximação, o Vulcan começou a responder as chamadas de rádio. Naquele momento, a missão de interceptação se tornou um socorro aéreo, e os caças ajudaram a conduzir a rota até a pista. A FAB queria ordenar o pouso na Base Aérea de Santa Cruz, mas os britânicos haviam traçado uma linha reta para o Galeão. Identificaram a pista de pouso a 23 mil pés e, pela segunda vez, desobedeceram as autoridades brasileiras ao não fazerem um circuito para pouso – não havia combustível para isso. O litoral carioca foi cruzado a ainda 16 mil pés, quando a tripulação conduziu um verdadeiro mergulho para o pouso. A 10 mil pés, veio o alerta de que havia apenas 1.500 libras de combustível a bordo – o mínimo para o pouso seria quatro mil. Uma curva fechada ajudou a reduzir a velocidade para o pouso. Finalmente, tocaram o solo em segurança – mas os motores apagaram ainda no táxi, com a aeronave sendo rebocada até a Base Aérea do Galeão.
A guerra acabou para aquela tripulação. Detidos ali, na realidade ganharam uma semana de descanso na piscina do Hotel de Trânsito. A situação foi amistosa. Na foto abaixo, a tripulação do Vulcan (Barry Smith – navegador, Rod Trevaskus – operador de sistemas, Chris Lackman, co-piloto, Brian Gardner – terceiro piloto, David Castle – operador de radar e Neil McDougall – comandante) sorri ao lado do adido militar britânico e de um oficial da FAB.
O maior trabalho ficaria com os diplomatas, tendo que lidar com a situação de os Estados Unidos terem transferido mísseis AGM-45 Shrike para os britânicos, um avião de guerra pousado em um país neutro, um míssil ativo extraviado e uma tripulação detida. Até peças de helicópteros Lynx foram oferecidas como parte das negociações. Sete dias depois, em 10 de junho, o Vulcan decolou, com tanques cheios, para a ilha de Ascenção. O míssil ficou. E o Brasil fez uma exigência: aquele avião específico nunca mais poderia ser usado contra os argentinos. Nem daria tempo, em 14 de junho, a liderança de Buenos Aires aceitava a rendição.
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