Em meio às tensões crescentes entre EUA e Irã, vale lembrar um dos episódios mais tristes entre os dois países. Em 3 de julho de 1988, um navio de guerra da US Navy destruiu com um míssil SM-2ER um avião Airbus A300 do voo Iran 655 da companhia Iran Air que voavam entre Teerã e Dubai. Todas as 290 pessoas a bordo morreram, incluindo 66 crianças.
O USS Vicennes, um cruzador equipado com o sistema de vigilância e ataque Aegis, passava pelo estreito de Ormuz quando seu helicóptero Seahawk trocou tiros com embarcações iranianas de pequeno porte. Em seguida, o radar AN/SPY-1 detectou o que foi erroneamente interpretado como um caça F-14 Tomcat da Força Aérea do Irã em rota de ataque. O comandante do navio, William Clyde Rogers III, decidiu então autorizar o lançamento do míssil.
As investigações posteriores apontam que o comandante não sabia se tratar de uma aeronave civil. O erro foi causado por uma série de fatores, sendo o principal deles a tensão que reinava na área. Pouco mais de um ano antes, a fragata norte-americana USS Stark foi atingida por engano por dois mísseis AM-39 Exocet lançados por um caça Mirage F-1 do Iraque. Era o tempo da guerra Irã-Iraque e os EUA mantinham embarcações no estreito de Ormuz. O maior temor naquele momento era que caças F-14 Tomcat iranianos estivessem armados com bombas e assim pudessem atacar navios.
A morte de 37 militares e a possibilidade de perda de um navio de guerra redobrou as atenções norte-americanas para ameaças. No fim de 1987, a fragata USS Samuel B. Roberts foi atingida por uma mina naval iraniana. Em abril de 87, foi a vez dos EUA revidarem, afundando a fragata Sahand com bombas e mísseis lançadas por aviões A-6 e do do destróier USS Joseph Strauss.
Crime ou erro?
O então ministro das relações exteriores do Irã, Ali Akbar Velayati, pediu que o conselho de segurança da ONU condenasse os Estados Unidos pelo que classificou como um ato criminoso, uma atrocidade, um massacre que não poderia ter sido um erro. Porém, apenas a União Soviética se manifestou contra os Estados Unidos, pedindo a suspensão das suas atividades militares na área.
A Resolução 616 do Conselho de Segurança, assinada por representantes de quinze países, incluindo o Brasil, expressou condolências pelas vítimas, apoiou o início de uma investigação imediata, citou a intenção de Irã e EUA de colaborarem nas investigações e ressaltou a resolução 598, do ano anterior, que pedia o fim da guerra Irã-Iraque.
Nas investigações posteriores, a US Navy apresentou duas justificativas. A primeira era a de que foram realizadas dez tentativas de contato por rádio com o avião antes do disparo. O relatório da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) confirmou essas tentativas.
Porém, a US Navy enviou mensagens em frequência destinada à “aeronave iraniana não identificada” que estaria voando a 350 nós (650 km/h). O problema era que essa era a chamada ground speed da aeronave. A tripulação do Airbus possivelmente via em seus instrumentos a indicação de airspeed de 300 nós (560 km/h) e pode ter achado não se tratar deles. De todo modo, os gravadores de voo (caixa preta) nunca foram localizados.
Por outro lado, a aeronave iraniana do Voo 655 estava em contato regular com os órgãos de controle de tráfego aéreo e, segundos antes de ser atingida, havia conversado em inglês com o controle de Bandar Abbas. Isso não foi notado pelos militares dos EUA porque as embarcações da US Navy não possuíam equipamento de rádio para monitorar as frequências de rádio da aviação civil.
A segunda justificativa apresentada inicialmente pela US Navy era a de que o USS Vicennes estava em águas internacionais quando sofreu o ataque das pequenas embarcações. Posteriormente a revista Newsweek conseguiu a confirmação de que tanto o helicóptero quanto o navio entraram em águas iranianas.
O capitão William Clyde Rogers III foi publicamente criticado pela sua postura. O próprio comandante do USS Sides, outra embarcação da US Navy que estava na área, criticou o Capitão Rogers pela sua agressividade.
Ansioso pelo combate e para comprovar a eficiência do sistema Aegis, o Capitão Rogers também teria recebido informações erradas da sua equipe, inclusive sobre o sistema IFF da aeronave atingida. O IFF, conforme planejado, emitia sinais indicando se tratar de uma aeronave civil.
Apesar do ocorrido, a carreira do capitão prosseguiu normalmente. Ele se manteve no comando do USS Vincennes até 27 de maio de 1989, conforme planejado. Em seguida, foi transferido para o Tactical Training Group, de Point Loma, sendo instrutor de táticas de combate para oficiais. Em 1990, recebeu a medalha Legion of Merit pelo seu desempenho como comandante. O texto da condecoração não cita o caso da aeronave iraniana.
O sistema Aegis também foi duramente criticado. A revista Scientific American classificou a derrubada do avião iraniano como um dos piores desastres da história envolvendo a interface homem-máquina. De fato, as mudanças de designação feitas automaticamente pelo software impediram os tripulantes de discernirem o que era um alvo militar de um contato civil, mesmo inicialmente o Airbus tendo sido identificado como Voo 655.
Os operadores do Aegis também não foram capazes de notar que, diferentemente do que um suposto F-14 armado com bombas faria, o Airbus não mergulhava em direção ao alvo. Pelo contrário, estava em rota ascendente. À época, o sistema Aegis era chamado de “escudo da frota” e tanto a indústria quanto os militares se orgulhavam de ser necessária a mínima intervenção humana para o seu funcionamento.
Apesar de os depoimentos e os relatórios apontarem ter se tratado de um acidente causado por erros de decisão e falhas no uso dos equipamentos de bordo, no Irã o caso é tratado como uma ação deliberada dos Estados Unidos contra civis. O então vice-presidente George Bush, em entrevista à revista Newsweek concedida em agosto de 1988, deu uma declaração forte: “Eu nunca pedirei desculpas pelos EUA.”
Em 1989 o Irã levou o caso para a Corte Internacional de Justiça. Sete anos depois, os Estados Unidos concordaram em pagar US$ 131,8 milhões, que deveriam pagar pela aeronave destruída e para as famílias das vítimas, sendo 300 mil dólares por cada ocupante da aeronave. Das 290 pessoas a bordo, havia 254 cidadãos iranianos, 13 dos Emirados Árabes Unidos, dez da Índia, seis do Paquistão, seis da Iugoslávia e um italiano.