Em entrevista exclusiva para Claudio Lucchesi, o Coronel (Ret) “Chip” Lamb conta como era pilotar o mais mítico caça norte-americano da Guerra Fria, interceptando os bombardeiros soviéticos sobre as águas glaciais do norte do Atlântico.
“Se estes encontros em voo com os bombardeiros soviéticos não eram de fato hostis, tão pouco eram ‘relaxantes’, pois havia sempre o perigo de uma colisão aérea, em condições de tempo ruim ou à noite, e também nos preocupávamos sobre haver um artilheiro velhaco ou louco (no ‘Bear’), que pudesse pensar que iríamos abater ou abalroar sua aeronave, e então abrisse fogo contra nós. Felizmente, os dois lados, e suas tripulações, eram disciplinados o suficiente para isto nunca ter ocorrido.”
É assim que o Coronel (Ret) Carroll “Chip” L. Lamb comenta sobre sua “rotina diária”, como piloto de caça da United States Air Force (USAF, Força Aérea norte-americana), voando o McDonnell-Douglas F-4E Phantom II, no 57th Fighter Interceptor Squadron (FIS, esquadrão de caças-interceptadores). Com seus aviadores sendo conhecidos como “The Black Knights of Keflavik” (Os Cavaleiros Negros de Keflavik), o esquadrão, apesar de ser da USAF, ficou sediado numa base da Marinha norte-americana na Islândia, a Naval Air Station (NAS) Keflavik, de 1954 a 1995. Sua missão era defender o espaço aéreo da nação nórdica, que apesar de ser membro da OTAN, não tinha uma força aérea própria. Estrategicamente, os Phantom II do 57th FIS eram componente crucial do dispositivo da OTAN de bloquear às aeronaves e embarcações soviéticas, em caso de confronto, o acesso ao Atlântico (e, com destaque, às rotas marítimas entre os EUA e a Europa Ocidental) pelo chamado GIUK Gap (acronismo para as passagens por mar e ar entre a Groenlândia, a Islândia e o Reino Unido).
A passagem GIUK era também o caminho por onde passavam os aviões de reconhecimento e de Inteligência soviéticos, em suas missões de analisar as defesas da OTAN, e monitorar as manobras marítimas desta no Atlântico (incluindo as movimentações da 2ª Frota da Marinha norte-americana, com seus porta-aviões). Tais voos, partindo de bases no noroeste da União Soviética, muitas vezes chegavam a ir até uma “escala técnica” em Cuba. Assim, os encontros entre tais aviões e os caças da 57th FIS eram frequentes, durante os quais, como conta Lamb, “nós também ‘escoltávamos’ e fotografávamos as aeronaves soviéticas, para propósitos de nossa Inteligência”.
Nascido em 22 de outubro de 1954, em Hendersonville, Carolina do Norte, Lamb relembra que desde garoto já queria voar caças na USAF, e seguiu para a Academia da Força Aérea assim que concluiu o ginásio, onde completou o colegial em 1977, conquistando uma comissão para oficial. Foi então para o treinamento de pilotos, na Base Aérea de Williams, no Arizona, “onde descobri que realmente amava voar jatos”. Terminada a instrução de voo, foi destacado para voar aquele que era então o mais avançado, poderoso e mítico caça dos EUA, o McDonnell-Douglas F-4 Phantom II. E seu primeiro posto já era bem na “linha de frente” da Guerra Fria – a Base Aérea de Spangdahlem, na então Alemanha Ocidental, onde chegou em 1979.
“Fiquei dois anos na Alemanha, e fui então destacado para voar o F-4 na NAS Keflavik, onde operei de março de 1981 a março de 1982, sendo então enviado de volta a Spangdahlem.” Lamb, então capitão, conta que “nossa estada de serviço em Keflavik era tipicamente de um ano, em rotina de voo, sem nossas famílias. Pilotos novatos ou jovens não eram destacados para Keflavik, pois considerava-se que apenas aviadores experientes, que conseguiam dar conta das condições meteorológicas muito difíceis da Islândia, deviam voar ali. Neve, gelo, neblina e vento podiam se combiner para tornar realmente muito perigoso voar na Islândia. Também, se éramos destacados para voar lá, devíamos fazer antes um curso na Fighter Weapons Intercept School, sobre técnicas de interceptação.” Com o fim da Guerra Fria, em setembro de 2006, a base foi entregue ao governo islandês, que a desativou em definitivo em 2011.
Perguntamos sobre sua ave, e Lamb não hesita – “o McDonnell-Douglas F-4E Phantom II era um grande avião, e um grande avião de se voar! Tinha dois motores muito potentes, que davam ao piloto um empuxo quase instantâneo; e muito empuxo imediato em pós-combustão. Infelizmente, este empuxo instantâneo tinha seu preço… Os motores não eram muito eficientes no consumo de combustível, então tínhamos de monitorar constantemente a situação do combustível. Se o tempo inesperadamente ‘fechasse’ em Keflavik, nossa alternative mais próxima era do outro lado da passage GIUK, no norte da Escócia. Assim, ter um avião-tanque para reabastecer o F-4, e o apoio de um AWACS E-3 (aeronave de alerta antecipado por radar, tornando a interceptação ser mais precisa), tornavam nosso trabalho bem mais fácil. Ter o combustível extra (do avião-tanque) significava que podíamos considerer diversas opções, incluindo alternar para a Escócia, se necessário.”
Muitos dos jatos do 57th FIS, incluindo diversos voados por ele em seus 12 meses em Keflavik, eram exemplares “veteranos” da guerra no Sudeste Asiático, no Vietnã, e tinham inclusive estrelas vermelhas pintadas, dos MiG abatidos ali. “Quando voava na Alemanha, a missão de nossos F-4 era o ataque, lançando bombas; ou com os F-4G, a missão era detectar e destruir os sítios de mísseis antiaéreos (SAM) inimigos. Já na Islândia, a missão era interceptor os aviões soviéticos, ou não-identificados, que tentassem penetrar no espaço aéreo do país.” Ele conta que diversos aviões soviéticos, destacando-se os grandes Tupolev Tu-95 (conhecidos na OTAN pelo codinome “Bear”), podiam voar desde a União Soviética, contornando o extremo norte da Noruega, e então “descendo”, para o sul, no rumo da Islândia ou das Ilhas Britânicas. “Às vezes, uma mesma aeronave podia fazer todo o trajeto até perto da Costa Leste dos EUA, chegando até Cuba. Então, depois de uns dias em Cuba, o avião refazia sua rota, em retorno, passando pela Costa Leste e pela passage GIUK, até pousar em Murmansk.”
De fato, a principal tarefa dos F-4 do 57th FIS era interceptar tais aeronaves antes que estas violassem o espaço aéreo islandês, “escoltando-as” para longe da ilha. E nas interceptações dos “zombies” (como eram apelidados os aviões soviéticos), era observado se estes levavam algum tipo de míssil ar-superfície (como os grandes Raduga Kh-22, antinavio, que podiam ter uma ogiva convencional ou nuclear), e se as armas defensivas destes estavam nas posições travadas (no caso dos canhões de 23mm de cauda dos “Bear”, apontados para cima); e então o tripulante do assento traseiro do caça norte-americano, o WSO (Weapons Systems Officer, operador dos sistemas de armas) fotografava o avião soviético, usando uma grande câmera que sempre estava a bordo. “Eu podia voar muito perto do ‘Zombie’… até a apenas 10 metros deste!, enquanto o tripulante traseiro fazia as fotos”, recorda Lamb.
“Parte de nossos procedimentos de interceptação exigia que registrássemos o número identificatório da aeronave interceptada. Mas, diferente de outros países, que colocam tais números de forma proeminente na cauda, os ‘Bear’ soviéticos tinham seus números nas portas do trem de pouso… Portas que, fechadas e com a aeronave em voo, exigiam que voássemos sob a aeronave, um pouco ao lado desta, entre as hélices contra-rotativas, para conseguir ver os números. Isto era particularmente difícil à noite. Para uma identificação noturna, o tripulante traseiro recebia uma potente lantern, para iluminar as portas e ver os números. Nós éramos instruídos que os aviões soviéticos geralmente tinham a bordo um official da KGB (service secreto), que falava ingles e podia monitorar nossas frequências de rádio (isto era antes de se introduzir comunicações ‘seguras’). Na noite de 20 de janeiro de 1982, fui enviado para encontrar um par de ‘Zombies’, que viriam a ser dois Tu-95 ‘Bear’. E quando me aproximei do primeiro, para ver o número nas portas do trem do nariz, alguém a bordo do ‘Bear’ acionou uma luz de alta potência, que temporariamente me ‘cegou’. Eu mantive distância segura do ‘Bear’ até que minha visão retornou, mas toda vez que voltava a me aproximar, a luz acendia e por momentos me ‘cegava’. Sabendo que alguém a bordo falava inglês e estava ouvindo nossa comunicação, falei pelo radio com o meu ala, dizendo que a luz estava arruinando minha visão ao ponto de eu temer acidentalmente colidir com o ‘Bear’. Então a luz não voltou, e fizemos nossa identificação com segurança. Pode ter sido coincidência, ou que o cara da KGB não desejasse morrer numa colisão aérea!”
Ele conta que “ficávamos em alerta de defesa aérea de 24 horas em NAS Keflavik, o que significava que haviam sempre dois F-4 armados e prontos para decolar, com suas tripulações de stand-by, nos bunkers de alerta, prontas para decolar em 5 minutos. Tipicamente, recebíamos um alerta antecipado de uma aeronave soviética através da Força Aérea norueguesa, que avisava que havia um ‘Zombie’ a caminho de nós. Então, cerca de uma hora estimada da interceptação, decolavam de NAS Keflavik um AWACS E-3 Sentry, e um avião-tanque KC-135. As tripulações dos F-4 guarneciam seus aviões cerca de 30 minutos antes da interceptação estimada. E nós podíamos encontrar, ‘escoltar’ e fotografar os ‘Zombies’ em qualquer condição de tempo, de dia ou noite.”
O trabalho de monitorar o trânsito de aviões soviéticos pela passagem GIUK, em tempos de paz, era uma ação conjunta, portanto, das diversas nações-membros da OTAN naquela região. Logo após decolarem de suas bases na região de Murmansk, os aviões soviéticos eram monitorados pelas estações de radar norueguesas, e então interceptados pelos caças daquele país, em seu voo ao longo do litoral deste. Se uma aeronave seguisse adiante, com destino a Cuba, caças da defesa aérea do Reino Unido podiam intercepta-la, seguidos pelos da USAF na Islândia; os do Canadá, e dali em diante, novamente por caças norte-americanos, à partir de suas bases em Vermont ou Massachusetts, na Virginia e, por fim, na Flórida. E no voo de retorno para a Rússia, havia todo este acompanhamento, no sentido inverso. Mas nem todos destes voos soviéticos iam até Cuba. Alguns faziam sua rota apenas até o Mar de Barents, ou até o norte do Atlântico, sendo então interceptados apenas pelos noruegueses e britânicos. Em alguns casos, Lamb comenta, “nós, na Islândia, éramos acionados e decolávamos, mas o avião retornava antes de chegar em nossa área. Muitas vezes, fui acordado no meio da noite, para me vestir e guarnecer a aeronave, e decolar numa noite fria, escura e cheia de neve, par air buscar uma aeronave ‘inimiga’ que havia inesperadamente sido detectada por nosso radar em terra”.
Sobre tais voos noturnos, alias, Lamb comenta que, apesar do perigo, “voar a noite podia ser uma experiência moderada, ou ser algo de fato mágico. Às vezes, o tempo podia estar fechado até 40.000 pés (12.200m), e você percebia o quão vulnerável estava, se ocorresse uma falha mecânica, ou um ‘passo em falso’, em tais condições desafiadoras. Outras vezes, o céu noturno parecia em chamas, com as luzes brilhantes e vivas das ‘luzes do Norte’ (a aurora boreal). O céu sobre nós tornava-se então uma magnificente tapeçaria de cores ricas e iridescentes”.
“Durante meus doze meses na Islândia, fiz sete missões nas quais nós interceptamos aeronaves soviéticas – seis foram os Tu-95 ‘Bear’, e uma, um Ilyushin Il-38 ‘May’ (de patrulha marítima, da mesma classe do P-3 Orion norte-americano).” Como explica Lamb, os grandes Tu-95 geralmente voavam em duplas, um seguindo o outro, com um espaçamento de três a oito quilômetros. Os F-4 também iam em dupla (líder e ala), e faziam a aproximação, identificação e fotos do avião posterior, então indo para o “Zombie” líder.
“Na maioria das vezes, as interceptações eram nessa rotina – as aeronaves soviéticas estavam na sua missão, e nós na nossa. Nós acenávamos para o artilheiro de cauda (soviético) e ele nos acenava de volta. Mesmo com eles sendo ‘o inimigo’, nós não tínhamos permissão de disparar. Isto foi no apogeu da Guerra Fria, e nós realmente acreditávamos que um dia estaríamos abatendo aquela aeronave que então estávamos pacificamente ‘escoltando’. Não vou entrar em detalhes sobre as (nossas) regras de engajamento, exceto para dizer que numa guerra total, devíamos abater qualquer aeronave que identificássemos como soviética; mas em tempos de paz, só podíamos disparar em autodefesa. E uma coisa que nós, nos caças, não fazíamos com os aviões soviéticos (em tempo de paz) era travar nosso radar de combate neles. Usar o nosso radar para acompanhar uma aeronave soviética significava que nossos mísseis podiam ‘mirar’ tal aeronave, e isto era considerado um ato ‘hostil’. Portanto, todas as nossas interceptações eram ‘sem monitoração (de alvo) pelo radar’, o que significava que nosso WSO devia ser muito bom naquilo que fazia.”
Após a estada em NAS Keflavik, Lamb retornou à Alemanha, onde ficou em serviço então por três anos, antes de deixar a USAF, passando para a Air National Guard (ANG, Guarda Aérea Nacional), e tornando-se piloto comercial na American Airlines. Ele iria ainda voar nos F-16 da ANG por 15 anos, incluindo combates no Iraque. Só então foi transferido para a Reserva da USAF, promovido a coronel, e destacado para um posto de Estado-Maior no Quartel-General do Air Combat Command (Comando de Combate Aéreo), na Base Aérea de Langley, na Virginia. Finalmente, viria a se aposentar do serviço militar em 2007, depois de 30 anos – incluindo 23 como piloto de caça. “Nestes 23 anos, eu voei diversos modelos do Phantom II – os F-4C, F-4D, F-4E e F-4G Wild Weasel. E também voei os F-16A, B, C e D, na Air National Guard.” Tendo se aposentado como piloto commercial em 2008, Lamb não conseguiu de modo algum deixar de voar, passando a pilotar o T-28 Trojan, como líder de um time de acrobacia aérea, os “Trojan Phlyers”.
“Eu nunca encontrei um piloto da antiga União Soviética. Gostaria de encontrar um dia, um daqueles pilotos de ‘Bear’, apenas para comparar nossas anotações. Visitei Berlim em 1984, incluindo um tour pelo setor oriental, a zona de presença soviética. E o que vi me disse que a ameaça era real, e que eu estive na linha de frente da Guerra Fria.”
Foto tirada por Lamb, do cockpit de seu F-4E, durante a interceptação de um Tupolev Tu-95RT “Bear-D”.
O então Capitão Carroll “Chip” L. Lamb, em 1981, quando estava no 57th FIS, em NAS Keflavik.
Caçador e presa. Um Tu-95 “Bear”, deixando vastos rastros de condensação, como visto pela mira do F-4E de Lamb, durante uma aproximação deste para a identificação numérica do bombardeiro soviético.
Um Tu-95RT sendo interceptado próximo à Islândia. Observe-se um F-4E ao fundo (no canto superior direito da foto).
O F-4E de “Chip” Lamb, aproximando-se de um KC-135 para se reabastecer, sobre a Islândia.
Numa foto feita após um voo, em 1981, em NAS Keflavik, “Chip” Lamb (à esquerda) aparece junto de um colega de esquadrão. Ambos usam o traje especial para sobrevivência em águas geladas, por baixo de seus trajes de voo.
Uma sequência de fotos feita pelo WSO do Phantom II pilotado por Lamb, durante a interceptação de um Tu-95RT.
Outro “Zombie” sendo interceptado pelos F-4E do 57th FIS. Neste caso, trata-se de um Tu-142 “Bear-F”, variante operada pela Marinha soviética, de reconhecimento marítimo e luta anti-submarino (ASW).